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Afrodescendentes em Caxias do Sul

Retrato da família de Abrilina Schmitt. Data não identificada. Autoria: Lauro Schmitt. Coleção especial do AHMJSA. Acervo: AHMJSA.

Diáspora negra em Caxias do Sul 

 

        O presente texto é um panorama sobre a presença negra em Caxias do Sul, na região serrana do Estado do Rio Grande do Sul. Conhecida pela forte  presença de imigrantes oriundos da Itália, a região ficou notadamente marcada pela presença italiana, o que acabou apagando a história de outras etnias que já estavam na serra gaúcha muito antes da chegada dos italianos na região.

           Destaco trabalhos importantes para a construção da história da presença negra na região, como: Presença africana na Serra Gaúcha: subsídios de Loraine Slomp Giron, de Lucas Caregnato: A Outra Face:A presença de Afro-descendentes em Caxias do Sul:1900-1950. Trabalhos mais específicos como: Associativismo Negro em  Caxias do Sul, de Fabrício  Romani Gomes, o referido trabalho abre uma nova perspectiva em relação a história da presença negra na cidade, levando em consideração aspectos culturais significativos para a comunidade negra da cidade, como espaços em que a cultura afro é reelaborada, como também, a ideia de uma comunidade coesa que se reúne para vivenciar sua pautas culturais. As referidas pesquisas foram centrais para a produção desse texto.

        A diáspora negra foi um trágico evento da história, milhões de pessoas que foram transladadas do continente africano para trabalharem na condição de cativos . Essas pessoas oriundas de diversas regiões da África, sobretudo o grupo Bantu e suas centenas de variantes culturais, chegaram ao Brasil em 1530, momento em que Portugal consolidou o projeto de colonização efetiva das novas terras na América. Estima-se que mais ou menos 10 milhões de almas foram trazidas para o “Novo Mundo”.

          A diáspora significa um deslocamento forçado de um ponto de origem a um destino em terras estrangeiras. O sujeito em condição de diáspora tende de alguma maneira manter viva as suas pautas culturais. Por isso a Diáspora Negra para além do simples deslocamento representa uma ressignificação de suas pautas culturais, que frente a cultura do colonizador resiste ora se camuflando ou mesmo vivendo abertamente em determinados espaços, como os quilombos, por exemplo.

         Por onde o elemento negro andou deixou marcas de sua presença. Em Caxias não foi diferente, os historiadores apontam para três ondas migratórias . Desde a época das sesmarias dos Campos de Cima da Serra, a Sesmaria Feijó, populações afrodescendentes que chegaram para a construção da estrada de ferro e a chegada do Batalhão de Caçadores.

Mapas identificando as três ondas migratórias no território que pertence a Caxias do Sul. Primeira na época das sesmarias dos Campos de Cima da Serra a partir de 1760.  Na quela época a região pertência a Santo Antônio da Patrula, quando São Fracisco de Paula se emancipou em 1903 a este município. Entre 1937 a 1954 essas regiões foram sendo anexadas ao município de Caxias do Sul. A Segunda onda quando, a Sesmaria Feijó é ocupada na decada de 1880. A Terceira onda populações afrodescendentes que chegaram para a construção da estrada de ferro 1910 e a chegada do Batalhão de Caçadores. Mapa Ilustrativo produzido por Marivania Sartoretto ano 2025.

          A ocupação da Província de São Pedro se deu efetivamente a partir do século XVIII. A historiadora Loraine Slomp Giron, aponta que havia em torno de 20 propriedades nos Campos de Cima da Serra entre os anos de 1750 e 1790. Propriedades estas que contavam com a presença negra, como atestam os registros de batismo. As localidades de Criúva, Vila Oliva e Vila Seca (pertencentes a São Francisco de Paula) conforme a referida historiadora havia uma presença negra significativa de negros e nestas localidades  que faziam limite com a Colônia Caxias do Sul. 

          Além das referidas ondas migratórias, havia negros que fugiam em direção a região serrana, muito antes da chegada dos italianos na região, nos revelando que a serra foi o destino de muitos negros que resistiram a escravidão, fugindo e encontrado acolhida por parte de cativos, como nos mostra o documento abaixo, datado de 19/11/1866 :

              "De Henrique Marques da Rocha (subdelegado de polícia de Santo Amaro), para:Gervásio Campelo Pires Ferreira (chefe de polícia). Descrição: informa que não foi possível capturar o réu João Oleiro- “lugar para onde consta que o dito Oleiro retirou-se foi para a serra, há muita gente nessa serra, não faltará escravos que acoitem o dito réu.”

            A correspondência policial acima  nos comunica que a serra era um destino conhecido pelas autoridades, destaca a solidariedade entre escravizados e fugitivos do cativeiro. A presença negra na região se faz notar muito antes da chegada da primeira leva de imigrantes oriundos da Itália para a região serrana do estado.  Ao que parece existiu uma rede de apoio aos fugitivos do cativeiro, contando com a participação de escravizados para esconder estas pessoas, que possivelmente se encaminharam para um quilombo.

            A presença de quilombos na região se fez notar conforme levantamentos. Quilombo palavra da língua quicongo que significa acampamento de guerreiros, representou em contexto de diáspora lugar de negros fugidos. Os quilombos representaram uma oportunidade de recomeço de vida, uma vida livre dos grilhões do sistema escravista vigente no país até o ano de 1888.

          Na região serrana do Rio Grande do Sul a presença destes territórios negros como Morro dos Baianos (atual Morro do Céu) localizado em Cotiporã. Em Criúva, distrito de Caxias do Sul existiu uma localidade denominada Quilombo, uma referência que marca a presença negra na região através de localidades que se estabeleceram como locais de resistência. A região serrana como as demais em nosso país em que a presença negra se fez notar tem nos quilombos a marca de luta contra o sistema escravista. Foi em localidades como estas que a comunidade negra pode minimamente recompor suas pautas culturais, algumas como reminiscência do continente africano que ficou para trás.

        Conforme a historiadora Lorraine o contato entre negros e imigrantes se deu através do troperismo, em que a maioria dos tropeiros eram negros, indígenas e mestiços, principalmente pós-abolição. A relação estabelecida entre tropeiros falantes do português contribuiu para que os imigrantes evoluíssem no aprendizado da língua portuguesa falada pelos brasileiros. Além da língua, os tropeiros ensinaram os italianos a ganhar dinheiro com os conhecimentos fornecidos gratuitamente, destaca Loraine.

               Um aspecto que de ser notado é o espaço negro, ou melhor as territorialidades negras e seus marcadores. Por territorialidade negra compreende-se como um conceito que se expande além do território físico, incluindo também os corpos, a memória, a ancestralidade e as práticas culturais de definem a identidade negra, os territórios negros são expressões espaciais que geografam as relações raciais e essas relações têm formas diversas de se expressar na sociedade no mundo todo, é a mesma multiplicidade que os territórios negros se apresentam[1].

Foto família Rabello, em Vila Seca, década de 1930. Acervo da família Rabello.

         À medida que a Cidade de Caxias se desenvolvia recebia um número significativo de pessoas procurando emprego e entre elas os afro-descendentes . Como eram de condição humilde não conseguiram se fixar em áreas urbanizadas, fazendo com que procurassem espaços com acentuados acidentes geográficos.[2] Dois espaços são comumente referidos como territorialidades negras, o bairro Burgo e a Vila do Cemitério. Caregnato observa que em Caxias do Sul as pessoas que compuseram os espaços de sub habitações, principalmente os negros, no caso Burgo e da Vila do Cemitério, encontrava-se em posição subordinada, num espaço identitário e étnico, que relegava a sua cultura e etnia um plano secundário.[3]

          A condição sócio étnica impedia a comunidade negra de interagir com o restante da população especificamente com os imigrantes. Os territórios negros ao mesmo tempo que são locais de exclusão são também espaços de resistência, em que se reelabora valores culturais em que se evoca a ancestralidade, as comunidades negras urbanas de alguma forma criaram seus espaços territórios para que pudessem se perceber como uma comunidade coesa através de laços associativos e de solidariedade. Conforme Rolnik a história da comunidade negra é:

           "marcada pela estigmatização de seus territórios na cidade:se, no mundo escravocrata, devir negro era sinônimo de subumanidade e barbárie, na República do trabalho livre, negro virou marca de marginalidade. O estigma foi formulado a partir de um discurso etnocêntrico e de uma prática repressiva; do olhar vigilante do senhor da senzala ao pânico do sanitarista em visita ao cortiço; do registro esquadrinhador do planejador urbano à violência das viaturas policiais nas vielas e favelas. Para a cidade, território marginal é território perigoso, porque é daí, desse espaço definido por quem lá mora como desorganizado, promíscuo e imoral, que pode nascer uma força disruptora sem limite.[4]" ROLNIK (1989 p. 16-17)

          O território negro é estigmatizado, vigiado e por vezes ocupado. Na realidade falamos dos corpos negros que devem ser observados e se possível confinados em seus espaços. A cidade sempre em constante movimento também produz uma contra narrativa, nesse caso os territórios negros na cidade de Caxias do Sul .

          Destaco como espaços negros (territorialidade negra), clubes associativos, times de futebol, religiosidade, movimento Hip-Hop e escola de samba como elementos culturais constitutivos da comunidade negra caxiense e a sua importância para a história e o desenvolvimento da cidade. Todos esses espaços são a priori lugares de resistência cultural que lutam para não ser apagados na narrativa da história única como bem refletiu Chimamanda Adiche, como dizia  o produtor cultural Wally Salomão “a memória é uma ilha de edição”.

        Um dos marcadores de territorialidade negra é o monumento dedicado ao Orixá Ogum (ligado à guerra à tecnologia). O referido monumento situado na Perimetral Sul, é uma representação do Orixá na sua versão africana, e não na sua versão sincrética, que no Rio Grande do Sul é representado por São Jorge. Cabe ressaltar que a comunidade umbandista o considera patrono da cidade de Caxias do Sul, ligando o Orixá com a sua relação com a tecnologia, dando um ideia de modernidade da cidade. O vereador Rafael Bueno do PDT, acompanhou o processo para considerar o monumento de Ogum como patrimônio cultural da cidade. Na ocasião o vereador lembrou que na Umbanda:

           "Todos são bem recebidos e sempre estamos preocupados em preservar a inclusão e livre manifestação das religiões. Esta é uma causa centrada na fé e no trabalho e que por isso merece todo o respeito, até porque neste ano o prefeito Daniel Guerra mandou a Associação de Umbanda desocupar a área intitulada Santuário Ecológico Reino dos Orixás, no bairro Cruzeiro, onde os praticantes encaminhavam oferendas dos rituais religiosos"

Monumento a Ogum Crédito: Marivania Sartoretto

           Caregnato sobre a religiosidade afro na região, destaca que no caso da religiosidade, são inúmeros os relatos orais que apontam à existência de curandeiras, feiticeiras e batuqueiras, desde a década de 20 do século passado.[5] Os espaços de religiosidade servem como um elemento de interação social e de resistência dos chamados grupos subalternizados. Para Bourdieu, a religião é um espaço de igualdade social, de acolhimento dos oprimidos e serve como instrumento de sociabilidade e de construção de sistemas simbólicos.[6] Mário Gardelin, observou que descendentes de origem italiana interagiram com com a Umbanda, conforme artigo publicado no jornal  Pioneiro:

           "Causa verdadeiramente espanto como a Umbanda progride em nossa cidade, Religião quase desconhecida há pouco tempo, com um que outro terreiro funcionando, hoje encontro adeptos dos mais convictos em todos os setores da sociedade. Médicos, advogados, engenheiros, professores, industrialistas, operários, etc. tomam parte em movimentos de proa que se iniciam nos terreiros.

           Lorraine nos apresenta uma informação importante sobre a religiosidade afro em Caxias do Sul. A historiadora, apontou que a cidade possui mais de 600 terreiros “ de batuque” à frente dos quais estão brancos de origem italiana. O dado apresentado nos mostra como elementos culturais afro foram de alguma maneira apropriados por descendentes de imigrantes, contribuindo para uma aproximação das duas culturas.

            Outro meio de integração social da comunidade negra caxiense foi o futebol. Mas precisamente com a fundação do Grêmio Esportivo Flamengo, oriundo da fusão do Esporte Clube Rio Branco e Rui Barbosa no ano de 1935. Esses times ligados às regiões mais pobre da cidade contou no seu plantel com atletas negros, em contra posição ao Juventude, clube localizado na área nobre da cidade e sem  apresença de negros em seus quadros esportivos naquele período. O Grêmio Esportivo Flamengo que posteriormente passará a ser chamado SER Caxias. Outros times de futebol também tiveram jogadores negros entre seus quadros futebolísticos, foi o Esporte Clube Tupy,  e também nos times ligados ao quartel como nos informa Caregnato. Os espaços de treino do Flamengo ficavam nas áreas do Burgo e na Vila do Cemitério.

           O associativismo negro pode ser notado ainda na época da escravidão como as Irmandades Religiosas. O associativismo, tem como finalidade juntar pessoas negras para se unirem a determinados projetos, como também, vivenciar as suas pautas culturais.

          Em Caxias do Sul, destacam-se na sua história, o Clube da Margaridas (1933) voltado às mulheres negras caxienses,  o Sport Club Gaúcho (1934). Caregnato nos informa que :

             Ao longo dos anos, Gaúcho serviu de espaço de interação, possibilidades trocas sociais e culturais entre os negros que frequentavam aquele ambiente, sendo o único que foi organizado e criado por homens e mulheres negros, em Caxias do Sul. Cabe salientar que o Sport Club Gaúcho, na década de 50 do (séc .XX), criou um departamento voltado exclusivamente voltado para o carnaval, sendo protagonista na cidade, e , posteriormente, foi transformado em escola de samba Protegidos da Princesa. (Caregnato,p.72.)

          Conforme citado acima, o clube Gaúcho foi importante para reunir as famílias negras da cidade, que puderam estabelecer interações diversas, solidificando os laços entre os associados. Não raro estes espaços associativos negros acabaram também se tornado escola de samba, uma marca cultural bem destacada é caso por exemplo da Sociedade Cruzeiro do Sul em Novo Hamburgo, que é um local de associativismo negro que também é escola de samba. O clube Gaúcho é um espaço que se constitui na cidade como um local onde a comunidade negra pode se sentir à vontade e bem acolhida, uma vez como consta em relatos, que os negros nem mesmo podiam passar em frente das sociedades frequentadas pelos brancos.  Na cidade de Caxias do Sul o universo do carnaval compreende entre quinze ou dezesseis agremiações dívidas entre blocos e escolas de samba.

    

Imagem- Página do Facebook do Clube Gaúco

        A Cultura Hip-Hop em Caxias do Sul é bem atuante, a cidade é considerada um dos grandes centros do Hip-Hop gaúcho. A cultura Hip-Hop teve a suas origens na cidade de Nova Iorque no final dos anos de 1970, nascida em uma atmosfera de luta contra o racismo, a pobreza a violência policial. Esse foi o período em que o movimento dos Panteras Negras (grupo revolucionário) atuava nos guetos das grandes cidades. Os Panteras criaram muitos programas sociais incluindo escolas, alguns nomes do cenário do movimento Hip-Hop vieram desses espaços educativos. O movimento que abrange cinco elementos: B.Boy, Dj, Grafite, Rap e o Conhecimento.

        Na cidade de Caxias essa cultura de origem negra e periférica que se faz notar em várias partes do mundo é muito representativa na cidade de Caxias. Um nome merece destaque na cena do Hip-Hop caxiense , Chiquinho de Vilas que é educador, escritor, compositor e rapper, desenvolve um trabalho educativo através da cultura Hip-Hop, atingindo centenas de pessoas. A cultura Hip-Hop tem contribuindo para orientar os jovens da periferia a trilharem um caminho de dignidade, fugindo do perigo da criminalidade e das drogas. 

           O campo de estudo sobre a História da presença negra em Caxias do Sul está aberto, trabalhos importantes foram feitos como os da historiadora Lorraine S, Giron, Lucas Caregnato e Fabrício Romani Gomes  amplamente citados neste texto. A importância da pesquisa histórica sobre a população negra na Cidade de Caxias e as suas características e contribuições segue uma tendência de acabar com a ideia da História única que contribui para o apagamento de outros atores sociais. Ao desapagar os apagados a memória da Cidade de Caxias do Sul desloca do provincianismo para o cosmopolitismo, reconhecendo a diversidade cultural da cidade, revelando um espaço que se mostra múltiplo e interessante. 

Este conteúdo integra o projeto Patrimônios, lendas e marcos de Caxias do Sul, financiado pela Lei Paulo Gustavo de Caxias do Sul.

Produção e organização: Marivania L. Sartoretto

Texto: Orson Soares

Fotos: Marivania L. Sartoretto, retrato da família de Abrilina Schmitt. Data não identificada. Autoria: Lauro Schmitt. Coleção especial do AHMJSA. Acervo: AHMJSA, acervo da família Rabello e divulgação Clube Gaúcho.

Ano: 2025

Para citar

SARTORETTO, Marivania L.; SOARES, Orson. Diáspora negra em Caxias do Sul. Caxias do Sul: Patrimônio, Marcos e Lendas / Lei Paulo Gustavo, 2025. Disponível em: https://www.guiadecaxiasdosul.com/turismo/patrimonios/patrimonios-e-lendas/afrodescendentes-em-caxias-do-sul

Referências

CAREGNATO, Lucas. A Outra Face: A Presença de Afro-descendentes em Caxias do Sul – 1900 a 1950. Caxias do Sul: Maneco Liv. E Ed, 2010. 

GIRON, Loraine Slomp. Presença africana na Serra Gaúcha: subsídios. Porto Alegre: Letra e Vida, 2009. 

ROLNIK, R. Territórios negros: etnicidade e cidade em São Paulo e Rio de Janeiro. Revista de Estudos Afro-asiáticos,Rio de Janeiro,n.17,p.16-17,1989.

NOGUEIRA, Azânia Mahin Romão. A construção e apagamento de territórios negros. Revista da ABPN• v , v. 12, n. 34, pág. 157-181, 2020.

GARDELIN,Mário.Umbanda. Pioneiro, Caxias do Sul,12 ago.1958. apud Caregnato, Lucas.p.63.